Hey, você aí

Não, não quero seu dinheiro.
Estava mais pra dizer 'Hey Jude', ou algo assim.
Bom, este blog é sobre mim. Não apenas eu, mas o que penso, sinto, etc. Já foi meio invasivo, já foi vazio. E no fundo ainda é legal, pra mim. Meu cantinho de desabafo e filosofia, se assim posso dizer.
Eu sou um livro aberto. O que quiser saber, pode achar aqui. E o que não conseguir, é porque ainda vamos nos esbarrar por esta vida irônica.

The Beatles

The Beatles
Abbey Road

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

4 spirits tale: Capítulos 6 e 7

Capítulo 6: Emboscada

Renata não sabia, mas não estava sonhando quando acordou e não encontrou Arthur ao seu lado. Tudo aconteceu em poucas horas, antes que ela notasse o sumiço.

A narrativa da ação começa aos 15 minutos para a meia noite que virava durante o sono da heroína. 
No hospital Miguel Couto, fazendo a guarda pessoal do Soldado Ferrugem, o incansável Cabo Souza. Não pregava um olho, não saía do quarto houvesse o que houvesse. Nos momentos em que era solicitado pelos outros PMs, orientava-os para o que fosse necessário. Passava a maior parte das instruções via rádio, e ainda assim conseguiu organizar as trocas de turno e de pontos de vigia. Sua boa memória permitia-lhe decorar todo o espaço e instalações ao redor, já pensando os melhores pontos táticos com a mente de um verdadeiro estrategista. 
Seu plano era simples: Impedir que Tristanildo matasse Ferrugem, e se possível, obter provas do envolvimento do Pastor com o tráfico e as milícias locais. Apesar de focar o impacto local que a bomba teria, Souza sabia que isso também seria o agravante definitivo para iniciar investigações mais profundas quanto a Tristanildo e todos os seus aliados em Brasília. O resultado poderia ser extremamente positivo, mas tudo dependia da eficiência de sua guarda. 
Não à toa, preveniu-se de todas as formas. Seus homens patrulhavam o entorno do hospital, bem como alguns faziam rondas dentro das instalações. Não se preocupava com atiradores à distância: colocara seus poucos homens de confiança justamente nas únicas posições adequadas para um tiro preciso e mortal na provável vítima; se alguém tentasse o feito seria pego. Na guarda do corredor aonde Ferrugem estava internado, 7 homens armados até os dentes, incluindo ele próprio, o único dentro do quarto. 
Souza esperava que o deputado viesse sozinho, dado que não tentaria confronto com a PM. Com todo o aparato bélico que seus companheiros teriam à mostra, isso intimidaria qualquer tentativa do deputado de assassinar Ferrugem portando alguma arma. A única escolha adequada seria sufocamento ou veneno, e caso isso acontecesse, Souza havia plantado uma escuta para o som ambiente no quarto. No exato momento em que o deixasse para que o deputado tivesse seu momento a sós, acionaria a escuta e esperaria pela deixa para prender o pastor.
Plano bem feito. Faltava acontecer.

2 minutos depois, o celular de Ferrugem toca. Souza atende:
"Olá, Senhor Pastor!
"Cabo Souza, meu querido! É uma benção falar com você de novo!"
"O senhor virá aqui hoje, como disse na TV?"
"Mas é claro, abençoado! Na verdade, chego em menos de meia hora. 
"Ok, estamos apenas esperando o senhor!"
"Glória de Deus, vou chegando!"

Meia noite e meia. Tristanildo entra na recepção do hospital. Veio sozinho. Os PMs que rondam a entrada do prédio repassam via rádio para o Cabo Souza.
O Pastor traz um buquê de flores nas mãos, que contrastam um tanto quanto muito com seu terno negro apenas esbranquiçado na cruz entalhada próxima ao bolso esquerdo. No bolso, uma Bíblia. Ele sorri largo, ao caminhar pelos corredores até chegar ao elevador.
Quando a porta do elevador abre, Tristanildo e Souza se avistam em cada extremo do corredor. Ambos parecem confiantes. O Pastor avança, a passos largos, e repara nos PMs ao longo do corredor. Não parece se intimidar. 

"É um prazer finalmente conhecê-lo!"
"O prazer é meu, Senhor Pastor!"
"Muito bem! Como está meu velho Ferrugem?"
"Não posso mentir, ele não vai bem. Mas tá melhorando.."
"Glória de Deus! Rezarei muito por ele. Posso vê-lo?"
"Claro, é só entrar por aqui. Só preciso que.."
"Que..?"
"Bom, - Souza tentou não transparecer o nervosismo - infelizmente preciso pedir para revistá-lo, Senhor Pastor. Não me leva a mal não, mas é procedimento padrão."
"Ah, ora, mas nenhum problema meu querido! Uma polícia justa trata a todos igualmente!"

Tristanildo estendeu os braços e abriu as pernas sem hesitar. Souza foi meticuloso, chegando a repetir o procedimento mais de uma vez. Por pouco não escondeu a frustração:

"O senhor tá limpo, só entrar."
"Pois bem. Glória de Deus!"

Abriu a porta e assim que o deputado adentrou o quarto, acionou a escuta. Mas não pôde acompanhar o que se dizia no quarto, quando seu rádio disparou:

"SOUZA, MATARAM O LEVIR E O ROCHA! TEM ALGUÉM ATIRANDO DESCENDO À RUA!!"
"É O QUÊ, BENTO? COMO ASSIM? E OS TIROS, COMO ASSIM? COMO NINGUÉM OUVIU?"
"NÃO SEI PORRA, MAS OS DOIS TAVAM NA ALA LESTE, SÓ DAVA PRA MATAR VINDO DE CIMA!"

Souza pensou rápido e se dirigiu a 2 policiais do esquadrão no corredor:

"LIRA, DESCE E LEVA O PESSOAL DA ENTRADA PRA LESTE, QUERO RELATÓRIO COMPLETO, TEM CHANCE DE ENFRENTAMENTO. BARROS, CANCELA AS RONDAS NO TÉRREO E MANDA FICAREM NA ENTRADA PRA REPOR!"

Os dois obedeceram e saíram do corredor. Souza correu para sua escuta, a tempo de ouvir:

"Você não me deixou escolha, seu miserável."

Souza se precipitou sobre a porta com toda a força, surpreendendo o Pastor e lhe apontando sua metralhadora:

"Faça qualquer merda e você morre, seu porco."
"O que foi que eu fiz?"
"Tenho escutas aqui. Você acha que engana alguém, filha da puta?"
"Ah, então você quer assim? Muito bem, seu macaquinho, abaixa essa arma."
"Piada racista antes de morrer? Você é muito podre."
"Antes de mim, morre toda a sua equipe."
"Como assim?"

Souza pôde ouvir o clique de um gatilho preparado logo atrás de sua cabeça. A voz ecoou, por trás:
"Baixa ela."
Souza largou a metralhadora.

"Bento, seu filho de uma puta.."
Souza levou uma coronhada por trás do Soldado Bento, caindo ao chão aos pés de Tristanildo. O pastor cuspiu em sua cara, e começou a falar:

"Bentinho é lá da Igreja. Não se engane, ele não paga dízimo, só recebe. Você acha que eu sou eleito só na base de fiéis? Esses imbecis mal conseguem ler um folheto de cola!!  É preciso gente como o Bentinho, o Ferrugem, entre outros tantos. Eu coço as costas deles, eles matam uns concorrentes ali, uns repórteres ali, repassam o dízimo do tráfico, compram votos na favela e no asfalto, etc. Você acha, aliás, que consegue me deter? Um preto de merda como você? Eu sou dono dessa porra toda. Vou continuar sendo."

"Bento, escuta só o que ele disse direito. O Ferrugem perdeu a utilidade e vai morrer na mão dele. O que acontece quando você perder a utilidade?"
"Eu não sou um merda igual o Ferrugem que perde 150 mil pra um nada."
"E se ele não tiver tanta paciência assim pra erros menores?"
"Os planos de Deus só erra se tem algum viado atrapalhando. Você é um viado desses."
"Muito bem dito, Bentinho. Pois bem, quem me dá um 38?"

O próprio Bento passa o seu para o Pastor. Tristanildo chuta o Cabo Souza até fazê-lo começar a cuspir sangue. Força o cano do 38 contra a testa do rapaz:

"Tu quer morrer? Ce vai morrer, ce vai morrer, ce tava querendo mesmo seu merda. Mas eu quero a gravação. Aonde porra tu enfiou o receptor? Tá no seu cu seu viado? Ou você é mais esperto que isso?"
"Me chupa seu bosta"
Tristanildo dá um tiro com o revólver junto à orelha de Souza, que grita com o estouro quase inevitável dos tímpanos. 
"E AGORA SEU MERDA, VAI FALAR? POIS BEM, TRAZ OS CARA AÍ!!

Bento faz um sinal e alguns PMs - todos possuíam o brasão da Ordem da Família oculto entre as fardas - trazem outros amarrados, já sangrando e claramente surrados, para o corredor. Estão desarmados. O pastor prossegue:

"Teus amigo otário aí. Vai falar? Bom falar, porque se não falar, mato todos. Sobraram quantos? 5? Incrível. Tu é um merda mesmo. Monta uma equipe de quase 30, eu só precisei de 5 infiltrados e já matei mais de 20. Fala. FALA CARALHO!"
"NÃO FAAALA" - berra um dos policiais amarrados.
"Menos um" - e Tristanildo atira na cabeça do sujeito. 
O sangue espirra em boa parte do corredor.

Souza não consegue conter a tristeza. Chora, mas tenta segurar para não engasgar com sangue.  
"Tem 4 ainda. Você vai morrer seu viado, quem me enfrenta morre. Mas eles eu posso pensar em soltar. Fala onde tá esse caralho. Agora."
"Vai......se fuder..."
Mais um tiro. Mais um corpo no chão. Os 3 restantes choram, impotentes, e ensanguentados pelos companheiros mortos.

"Você é um viado cruel hein? Seus amigos tudo morrendo, cuzão....acho que não vale à pena. Vou mandar matar todo mundo e caçar aqui até achar...MELHOR! Vou tacar fogo nesse hospital. Quero ver quem vai achar alguma coisa de valor depois.."
Souza arregalou os olhos e o Pastor percebeu:
"AHHHH, ENTÃO AINDA HÁ SALVAÇÃO PARA ESTA ALMA! GLÓRIA DE DEUS!!"
Com dificuldade, o Cabo começou a falar...
"Está..está ali. Na prateleira do quarto ao lado.."
"Muito bom, viadinho - Tristanildo se levanta, chuta o Cabo e cospe novamente em seu rosto. Vira-se para os 3 restantes - Que vocês tenham aprendido uma boa lição aqui hoje, meus caros: apenas aqueles que seguem a Glória de Deus merecem viver! Eu sou um dos representantes verdadeiros da palavra do Nosso Senhor! Apenas os meus sócios e superiores na Igreja partilham desta graça. Todas as outras visões são falsas, tudo é mentira, é deturpação do demônio! E apenas nós sabemos o que é correto!! E assim sendo, faremos TUDO e estaremos SEMPRE CERTOS! SEMPRE! E AI DAQUELE QUE DISCORDAR DA GLÓRIA DE DEUS! SE QUISEREM VIVER, ENTREM PARA A ORDEM! ARREPENDAM-SE! POIS AGORA EU DAREI AO SEU PRETINHO O CASTIGO MERECIDO! VOU MANDÁ-LO PRO INFERNO!!"

Tristanildo recarrega a pistola, aponta para o Cabo Souza, mas escuta um barulho estranho vindo do quarto. São urros. Ferrugem está urrando, desesperadamente, conseguindo se sobrepor à voz do Pastor em pleno discurso.

"AHHHH, VOCÊ!!! EU QUASE IA ME ESQUECENDO.. - caminha e começa a dar risadas, na direção do quarto de Ferrugem - VOCÊ QUE ME FUDEU, SEU MERDA. VIADINHO, VOCÊ ESPERA UM POUCO, QUE TEM ALGUÉM QUE TEM QUE SENTAR NO PAU DO CAPETA ANTES DE VOCÊ IR LÁ CHUPAR, OK?"

Tristanildo abre a porta, e gargalha ao ver o desespero de Ferrugem, completamente enfaixado e lutando com todas as forças contra as ataduras e amarras na cama. Se prepara para puxar o gatilho, e resolve proferir a sentença:

"VOCÊ ACREDITA NO INFERNO, FERRUGEM?"
"E você, pastor?" - diz uma voz ao fundo do corredor. 

O deputado pula pra trás de susto, e quando olha, não acredita no que vê. Uma labareda viva, encobrindo o que parecia ser um homem, mas cujos olhos lembravam um demônio em carne e osso. O pastor atirou todas as balas em seu poder, apenas para vê-las derreterem na chama. E eis que o homem nas chamas caminhou na direção do pastor, revelando-se:

Os cabelos, agitados para cima, eram de fogo em pura ardência, com alguns fios caindo por sob a máscara vermelha, aonde os olhos verdes e brilhantes criavam grande contraste. Todo o corpo do homem parecia ser de uma armadura vermelha escamada, com uma labareda viva no peito, e ainda lhe fora possível notar as asas demoníacas, e as duas espadas enganchadas por um cinto acima da bacia. 

"Você acredita no inferno, Pastor?"
"QUEM É VOCÊ??  - Tristanildo entra em pânico, e recua desesperado pelo quarto, vendo-se tão sem saída quanto Ferrugem - O QUE É VOCÊ?"
"Não sei bem, você disse que é portador da graça divina não é?"
"SIM, E VOU USAR O NOME DE JESUS PARA EXPULSÁ-LO! EM NOME DO BEM E DA VONTADE DIVINA!"
"HAHAHHHA, você é um comédia, seu merda. Pois bem, você é a graça divina? O bem? Então eu vou lhe dizer quem eu sou."

O demônio continua andando na direção do deputado, calmamente. Tristanildo puxa uma faca da Bíblia em seu bolso e ameaça Ferrugem:

"MAIS UM PASSO E EU..."
Antes que pudesse se colocar em posição de ameaça, o homem de fogo lhe alcança em centésimos de segundo, pegando o braço que portava a faca com força descomunal, quebrando vários ossos na simples pegada, e queimando a pele do deputado como se fosse folha de jornal. A dor sentida pelo deputado superou todas as já sentidas sem sua vida de regalias, e gerou um grito ensurdecedor e capaz de apiedar até mesmo seus maiores inimigos políticos.

"POR FAVOOOR, AAAAAAAAAAAAAARGHHH, QUEM....QUEM É VOCÊ? AHHHHHHHH NÃO, O QUE VOCÊ É???"
"Eu sou a própria vingança do Diabo encarnada. Se você representa o bem, se um lixo como você é o bem, eu sou pior que o mal, eu sou pior que os seus pesadelos, eu vou DESTRUIR você e todo mundo que te segue e te ajuda, um por um. A partir de agora você vai conhecer o VERDADEIRO INFERNO."
"ME MATA...POR FAVOR ME MATA..."
"HAHAHA, MATAR? - Tudo isso rola com o demônio ainda segurando o braço do deputado, ou o que sobrou dele - MATAR VOCÊ É MUITO FÁCIL. E MUITA PIEDADE. Piedade é para os bons, como você. Eu não tenho piedade. Eu vou me divertir um pouquinho. Quem sabe você não tenha algo a me oferecer?"
"TUDO, TUDO QUE VOCÊ QUISER! DINHEIRO, MULHERES, CARGOS, PROTEÇÃO, O QUE VOCÊ QUISER! ME SOLTAAA!"
"Quero nomes, meu caro pastor. Nomes, endereços, emails, quero saber quem colabora com você. Todos os seus crimes. Todos os seus pecados."
"EU FALO, EU FALO TUDO O QUE EU SEI, EU JURO QUE NÃO É MUITO!"
"AHAHAHA MAS AINDA É HUMILDE! - e soca o Pastor, com tanta força quanto calor no golpe, deixando algumas costelas quebradas e uma marca de punho na barriga do deputado - AINDA É HUMILDE! Você tem meia hora, meu caro. E vai fazê-lo aqui mesmo, perto da escuta."

Ferrugem, imóvel na cama, assiste a tudo. Depois de chorar até secar as lágrimas de tanto medo, e até se borrar, já estava quase desmaiando. O homem na labareda olhou para o enfermo, com ar de sarcástico:

"Hoje não rapaz, hoje você tá limpo.."

No mesmo instante, o homem segue na direção do Cabo Souza, o ajuda a levantar, e o coloca de frente para o deputado. Souza está paralisado de medo, e quase vomita ao perceber o braço completamente desfigurado e torto do deputado. O demônio fala:

"Eu pego só quem tem que ser pego. Seus parceiros estão bem, vivos. Os traidores estão vivos, mas devem estar irreconhecíveis, não deu pra controlar muito na hora: ou eu agia ou morriam mais pessoas."
"Quem é você?"
"Não interessa. Interessa que você tem boa cabeça. E uma escuta e um gravador. Ele - aponta para Tristanildo - é todo seu."

Meia hora depois, Cabo Souza guarda seus equipamentos e ruma pra casa. O homem que incendiou todo um corredor e fez as chamas desaparecerem junto com ele sumiu no exato instante que a entrevista acabara. Tristanildo apagara no corredor, sem conseguir reunir coragem para sair do lugar. Ele sabia que não faria mais diferença voltar pra casa: entregara o primeiro nome proibido da lista,  o de seu parceiro mais forte na Câmara; Mangalido.

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 Capítulo 7: O Coronel e o novo Soldado

Uma semana depois dos acontecimentos da madrugada no Miguel Couto, a imprensa foi à loucura. Os estouros da gravação do Cabo Souza levaram à cassação de Tristanildo, emperraram em definitivo o avanço da tentativa de mudar a Lei de Porte de Armas, e ainda colocaram pela primeira vez no alvo das críticas e com provas concretas, Mangalido. 

O Ex-coronel do exército, Neto Mangalido, era famoso por suas opiniões ainda mais conservadoras do que em comparação com Tristanildo. Fora um dos formuladores da proposta de mudança na Lei de Porte de Armas, entre outras coisas. A quantidade absurda de processos em suas costas remetia à diversos casos de apologia ao estupro, racismo, classismo, xenofobia, machismo, misoginia, enfim: uma lista mais do que suficiente para permitir julgar qualquer seguidor ou defensor do sujeito como um total mentecapto ou um fascista sem caráter. Apesar de tudo isso, nunca fora ameaçado de perda de mandato ou mesmo condenado à cadeia por incitar o crime de ódio e mesmo a anti-democracia, justamente por nunca terem havido provas de sua conduta irregular (que com certeza já era sabida). Mas agora, haviam provas.

Diferente de Tristanildo, Mangalido tinha muito mais confiança pois ele não precisava pagar para ser protegido ou ovacionado. Como coronel, tratou de garantir que os processos de formação militar gerassem uma boa quantidade de seguidores naturais de suas ideias. Ele gerou toda uma legião de fascistas que militassem por ele. Portanto, em termos de influência política - e logo, intangibilidade - Mangalido era mais forte e assumia assim uma posição de liderança no partido e nas iniciativas políticas que decidia se envolver. Era a primeira vez, de fato, que lidaria com acusações concretas, mas ainda assim mantinha a tranquilidade. Ao menos, a priori.
Esperou que a poeira baixasse naquela semana, e marcou encontro com Tristanildo em sua casa:

"Você abriu o bico."
"Manga, eu posso explicar."
"Você abriu o bico por quê? Posso saber? De verdade?"
"Não tá vendo aqui, o que fizeram?"
"Você e eu já fizemos pior em inimigo. Você saberia aguentar. Treinamos isso."
"Não Manga, não cara. Não aquilo."
"Aquilo o quê? Me justifica cara. Me dá uma justificativa. Você já aguentou pior."
"Manga, era um demônio..."
"DEMÔNIO É O CARALHO, EU SOU O DEMÔNIO AQUI E AGORA, VOCÊ VAI ME CONTAR QUEM FOI QUE VOCÊ CHUPOU PRA CHEGAR NO PARTIDO POR ACASO?'
"Me desculpa, Manga - e Tristanildo chora - é sério...eu.."
"O QUÊ? VOCÊ O QUÊ?"
"Eu ia morrer, cara. Ele era o demo...eu juro, eu vi, se você perguntar pros rapazes que estavam lá na hora.."
"Sabe o pior? ELES DISSERAM A MESMA COISA! Ao menos, os que tinham boca sarada pra falar.."

Levantou-se, cerveja na mão, franzindo a testa e procurando opções. Retornou para Tristanildo:

"Aquele projeto que ia rolar...da mãozinha lá?"
"Ah o projeto do Rafael? Eu não sei bem, desde aquele tiroteio no Alemão foi uma confusão..perdi o contato."
"Ainda tem o telefone?"
"Acho que sim."
"Me passa aqui. Eu vou atrás desse fedelho."
"Pra quê? Ele só estava na Ordem pelo projeto, a essa altura não quer nada com a gente."
"Quer, quer sim. Comigo ele quer, porque eu posso dar o que ele quer. Você é um cuzão enrolado, não resolveu pra ele. E ainda fudeu TODO MUNDO! Devia ter morrido logo."
"Então por quê não me mata?"
"E deixar mais claro que você é delator? Usa a cabeça. Viado imbecil."
"Ah...ok. Mas o que você pode dar pra ele?"
"Material. Lugar pra trabalhar."
"Pra quê esse interesse? Não vai rolar mais. Não vamos mais conseguir aprovar a mudança. Não vai dar pra Ordem sair armada por aí fazendo a limpa necessária."
"Não é a limpa que tá me preocupando. É quem te pegou. Quem pegou o Ferrugem. Já tem mais relatos desse tal demo aí, em alguns jornais. Poucas fotos sem definição. Todos os testemunhos de gente nossa falam que o cara existe. E claro, SÓ OS NOSSOS tem sido pegos. Esse cara tá cavucando a gente, ele quer fuder a gente. Especificamente. E eu vou fuder ele."
"Eu não acho que aquele projetinho possa.."
"Você CALA A BOCA. E se não funcionar, eu mesmo meto bala nesse merda."

Naquela mesma tarde, Rafael Oliveira tinha acabado de ser despejado por não pagar o aluguel. Estava bêbado, como nas últimas semanas, quando aconteceu. 

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