Hey, você aí

Não, não quero seu dinheiro.
Estava mais pra dizer 'Hey Jude', ou algo assim.
Bom, este blog é sobre mim. Não apenas eu, mas o que penso, sinto, etc. Já foi meio invasivo, já foi vazio. E no fundo ainda é legal, pra mim. Meu cantinho de desabafo e filosofia, se assim posso dizer.
Eu sou um livro aberto. O que quiser saber, pode achar aqui. E o que não conseguir, é porque ainda vamos nos esbarrar por esta vida irônica.

The Beatles

The Beatles
Abbey Road

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

4 spirits tale: Capítulos 6 e 7

Capítulo 6: Emboscada

Renata não sabia, mas não estava sonhando quando acordou e não encontrou Arthur ao seu lado. Tudo aconteceu em poucas horas, antes que ela notasse o sumiço.

A narrativa da ação começa aos 15 minutos para a meia noite que virava durante o sono da heroína. 
No hospital Miguel Couto, fazendo a guarda pessoal do Soldado Ferrugem, o incansável Cabo Souza. Não pregava um olho, não saía do quarto houvesse o que houvesse. Nos momentos em que era solicitado pelos outros PMs, orientava-os para o que fosse necessário. Passava a maior parte das instruções via rádio, e ainda assim conseguiu organizar as trocas de turno e de pontos de vigia. Sua boa memória permitia-lhe decorar todo o espaço e instalações ao redor, já pensando os melhores pontos táticos com a mente de um verdadeiro estrategista. 
Seu plano era simples: Impedir que Tristanildo matasse Ferrugem, e se possível, obter provas do envolvimento do Pastor com o tráfico e as milícias locais. Apesar de focar o impacto local que a bomba teria, Souza sabia que isso também seria o agravante definitivo para iniciar investigações mais profundas quanto a Tristanildo e todos os seus aliados em Brasília. O resultado poderia ser extremamente positivo, mas tudo dependia da eficiência de sua guarda. 
Não à toa, preveniu-se de todas as formas. Seus homens patrulhavam o entorno do hospital, bem como alguns faziam rondas dentro das instalações. Não se preocupava com atiradores à distância: colocara seus poucos homens de confiança justamente nas únicas posições adequadas para um tiro preciso e mortal na provável vítima; se alguém tentasse o feito seria pego. Na guarda do corredor aonde Ferrugem estava internado, 7 homens armados até os dentes, incluindo ele próprio, o único dentro do quarto. 
Souza esperava que o deputado viesse sozinho, dado que não tentaria confronto com a PM. Com todo o aparato bélico que seus companheiros teriam à mostra, isso intimidaria qualquer tentativa do deputado de assassinar Ferrugem portando alguma arma. A única escolha adequada seria sufocamento ou veneno, e caso isso acontecesse, Souza havia plantado uma escuta para o som ambiente no quarto. No exato momento em que o deixasse para que o deputado tivesse seu momento a sós, acionaria a escuta e esperaria pela deixa para prender o pastor.
Plano bem feito. Faltava acontecer.

2 minutos depois, o celular de Ferrugem toca. Souza atende:
"Olá, Senhor Pastor!
"Cabo Souza, meu querido! É uma benção falar com você de novo!"
"O senhor virá aqui hoje, como disse na TV?"
"Mas é claro, abençoado! Na verdade, chego em menos de meia hora. 
"Ok, estamos apenas esperando o senhor!"
"Glória de Deus, vou chegando!"

Meia noite e meia. Tristanildo entra na recepção do hospital. Veio sozinho. Os PMs que rondam a entrada do prédio repassam via rádio para o Cabo Souza.
O Pastor traz um buquê de flores nas mãos, que contrastam um tanto quanto muito com seu terno negro apenas esbranquiçado na cruz entalhada próxima ao bolso esquerdo. No bolso, uma Bíblia. Ele sorri largo, ao caminhar pelos corredores até chegar ao elevador.
Quando a porta do elevador abre, Tristanildo e Souza se avistam em cada extremo do corredor. Ambos parecem confiantes. O Pastor avança, a passos largos, e repara nos PMs ao longo do corredor. Não parece se intimidar. 

"É um prazer finalmente conhecê-lo!"
"O prazer é meu, Senhor Pastor!"
"Muito bem! Como está meu velho Ferrugem?"
"Não posso mentir, ele não vai bem. Mas tá melhorando.."
"Glória de Deus! Rezarei muito por ele. Posso vê-lo?"
"Claro, é só entrar por aqui. Só preciso que.."
"Que..?"
"Bom, - Souza tentou não transparecer o nervosismo - infelizmente preciso pedir para revistá-lo, Senhor Pastor. Não me leva a mal não, mas é procedimento padrão."
"Ah, ora, mas nenhum problema meu querido! Uma polícia justa trata a todos igualmente!"

Tristanildo estendeu os braços e abriu as pernas sem hesitar. Souza foi meticuloso, chegando a repetir o procedimento mais de uma vez. Por pouco não escondeu a frustração:

"O senhor tá limpo, só entrar."
"Pois bem. Glória de Deus!"

Abriu a porta e assim que o deputado adentrou o quarto, acionou a escuta. Mas não pôde acompanhar o que se dizia no quarto, quando seu rádio disparou:

"SOUZA, MATARAM O LEVIR E O ROCHA! TEM ALGUÉM ATIRANDO DESCENDO À RUA!!"
"É O QUÊ, BENTO? COMO ASSIM? E OS TIROS, COMO ASSIM? COMO NINGUÉM OUVIU?"
"NÃO SEI PORRA, MAS OS DOIS TAVAM NA ALA LESTE, SÓ DAVA PRA MATAR VINDO DE CIMA!"

Souza pensou rápido e se dirigiu a 2 policiais do esquadrão no corredor:

"LIRA, DESCE E LEVA O PESSOAL DA ENTRADA PRA LESTE, QUERO RELATÓRIO COMPLETO, TEM CHANCE DE ENFRENTAMENTO. BARROS, CANCELA AS RONDAS NO TÉRREO E MANDA FICAREM NA ENTRADA PRA REPOR!"

Os dois obedeceram e saíram do corredor. Souza correu para sua escuta, a tempo de ouvir:

"Você não me deixou escolha, seu miserável."

Souza se precipitou sobre a porta com toda a força, surpreendendo o Pastor e lhe apontando sua metralhadora:

"Faça qualquer merda e você morre, seu porco."
"O que foi que eu fiz?"
"Tenho escutas aqui. Você acha que engana alguém, filha da puta?"
"Ah, então você quer assim? Muito bem, seu macaquinho, abaixa essa arma."
"Piada racista antes de morrer? Você é muito podre."
"Antes de mim, morre toda a sua equipe."
"Como assim?"

Souza pôde ouvir o clique de um gatilho preparado logo atrás de sua cabeça. A voz ecoou, por trás:
"Baixa ela."
Souza largou a metralhadora.

"Bento, seu filho de uma puta.."
Souza levou uma coronhada por trás do Soldado Bento, caindo ao chão aos pés de Tristanildo. O pastor cuspiu em sua cara, e começou a falar:

"Bentinho é lá da Igreja. Não se engane, ele não paga dízimo, só recebe. Você acha que eu sou eleito só na base de fiéis? Esses imbecis mal conseguem ler um folheto de cola!!  É preciso gente como o Bentinho, o Ferrugem, entre outros tantos. Eu coço as costas deles, eles matam uns concorrentes ali, uns repórteres ali, repassam o dízimo do tráfico, compram votos na favela e no asfalto, etc. Você acha, aliás, que consegue me deter? Um preto de merda como você? Eu sou dono dessa porra toda. Vou continuar sendo."

"Bento, escuta só o que ele disse direito. O Ferrugem perdeu a utilidade e vai morrer na mão dele. O que acontece quando você perder a utilidade?"
"Eu não sou um merda igual o Ferrugem que perde 150 mil pra um nada."
"E se ele não tiver tanta paciência assim pra erros menores?"
"Os planos de Deus só erra se tem algum viado atrapalhando. Você é um viado desses."
"Muito bem dito, Bentinho. Pois bem, quem me dá um 38?"

O próprio Bento passa o seu para o Pastor. Tristanildo chuta o Cabo Souza até fazê-lo começar a cuspir sangue. Força o cano do 38 contra a testa do rapaz:

"Tu quer morrer? Ce vai morrer, ce vai morrer, ce tava querendo mesmo seu merda. Mas eu quero a gravação. Aonde porra tu enfiou o receptor? Tá no seu cu seu viado? Ou você é mais esperto que isso?"
"Me chupa seu bosta"
Tristanildo dá um tiro com o revólver junto à orelha de Souza, que grita com o estouro quase inevitável dos tímpanos. 
"E AGORA SEU MERDA, VAI FALAR? POIS BEM, TRAZ OS CARA AÍ!!

Bento faz um sinal e alguns PMs - todos possuíam o brasão da Ordem da Família oculto entre as fardas - trazem outros amarrados, já sangrando e claramente surrados, para o corredor. Estão desarmados. O pastor prossegue:

"Teus amigo otário aí. Vai falar? Bom falar, porque se não falar, mato todos. Sobraram quantos? 5? Incrível. Tu é um merda mesmo. Monta uma equipe de quase 30, eu só precisei de 5 infiltrados e já matei mais de 20. Fala. FALA CARALHO!"
"NÃO FAAALA" - berra um dos policiais amarrados.
"Menos um" - e Tristanildo atira na cabeça do sujeito. 
O sangue espirra em boa parte do corredor.

Souza não consegue conter a tristeza. Chora, mas tenta segurar para não engasgar com sangue.  
"Tem 4 ainda. Você vai morrer seu viado, quem me enfrenta morre. Mas eles eu posso pensar em soltar. Fala onde tá esse caralho. Agora."
"Vai......se fuder..."
Mais um tiro. Mais um corpo no chão. Os 3 restantes choram, impotentes, e ensanguentados pelos companheiros mortos.

"Você é um viado cruel hein? Seus amigos tudo morrendo, cuzão....acho que não vale à pena. Vou mandar matar todo mundo e caçar aqui até achar...MELHOR! Vou tacar fogo nesse hospital. Quero ver quem vai achar alguma coisa de valor depois.."
Souza arregalou os olhos e o Pastor percebeu:
"AHHHH, ENTÃO AINDA HÁ SALVAÇÃO PARA ESTA ALMA! GLÓRIA DE DEUS!!"
Com dificuldade, o Cabo começou a falar...
"Está..está ali. Na prateleira do quarto ao lado.."
"Muito bom, viadinho - Tristanildo se levanta, chuta o Cabo e cospe novamente em seu rosto. Vira-se para os 3 restantes - Que vocês tenham aprendido uma boa lição aqui hoje, meus caros: apenas aqueles que seguem a Glória de Deus merecem viver! Eu sou um dos representantes verdadeiros da palavra do Nosso Senhor! Apenas os meus sócios e superiores na Igreja partilham desta graça. Todas as outras visões são falsas, tudo é mentira, é deturpação do demônio! E apenas nós sabemos o que é correto!! E assim sendo, faremos TUDO e estaremos SEMPRE CERTOS! SEMPRE! E AI DAQUELE QUE DISCORDAR DA GLÓRIA DE DEUS! SE QUISEREM VIVER, ENTREM PARA A ORDEM! ARREPENDAM-SE! POIS AGORA EU DAREI AO SEU PRETINHO O CASTIGO MERECIDO! VOU MANDÁ-LO PRO INFERNO!!"

Tristanildo recarrega a pistola, aponta para o Cabo Souza, mas escuta um barulho estranho vindo do quarto. São urros. Ferrugem está urrando, desesperadamente, conseguindo se sobrepor à voz do Pastor em pleno discurso.

"AHHHH, VOCÊ!!! EU QUASE IA ME ESQUECENDO.. - caminha e começa a dar risadas, na direção do quarto de Ferrugem - VOCÊ QUE ME FUDEU, SEU MERDA. VIADINHO, VOCÊ ESPERA UM POUCO, QUE TEM ALGUÉM QUE TEM QUE SENTAR NO PAU DO CAPETA ANTES DE VOCÊ IR LÁ CHUPAR, OK?"

Tristanildo abre a porta, e gargalha ao ver o desespero de Ferrugem, completamente enfaixado e lutando com todas as forças contra as ataduras e amarras na cama. Se prepara para puxar o gatilho, e resolve proferir a sentença:

"VOCÊ ACREDITA NO INFERNO, FERRUGEM?"
"E você, pastor?" - diz uma voz ao fundo do corredor. 

O deputado pula pra trás de susto, e quando olha, não acredita no que vê. Uma labareda viva, encobrindo o que parecia ser um homem, mas cujos olhos lembravam um demônio em carne e osso. O pastor atirou todas as balas em seu poder, apenas para vê-las derreterem na chama. E eis que o homem nas chamas caminhou na direção do pastor, revelando-se:

Os cabelos, agitados para cima, eram de fogo em pura ardência, com alguns fios caindo por sob a máscara vermelha, aonde os olhos verdes e brilhantes criavam grande contraste. Todo o corpo do homem parecia ser de uma armadura vermelha escamada, com uma labareda viva no peito, e ainda lhe fora possível notar as asas demoníacas, e as duas espadas enganchadas por um cinto acima da bacia. 

"Você acredita no inferno, Pastor?"
"QUEM É VOCÊ??  - Tristanildo entra em pânico, e recua desesperado pelo quarto, vendo-se tão sem saída quanto Ferrugem - O QUE É VOCÊ?"
"Não sei bem, você disse que é portador da graça divina não é?"
"SIM, E VOU USAR O NOME DE JESUS PARA EXPULSÁ-LO! EM NOME DO BEM E DA VONTADE DIVINA!"
"HAHAHHHA, você é um comédia, seu merda. Pois bem, você é a graça divina? O bem? Então eu vou lhe dizer quem eu sou."

O demônio continua andando na direção do deputado, calmamente. Tristanildo puxa uma faca da Bíblia em seu bolso e ameaça Ferrugem:

"MAIS UM PASSO E EU..."
Antes que pudesse se colocar em posição de ameaça, o homem de fogo lhe alcança em centésimos de segundo, pegando o braço que portava a faca com força descomunal, quebrando vários ossos na simples pegada, e queimando a pele do deputado como se fosse folha de jornal. A dor sentida pelo deputado superou todas as já sentidas sem sua vida de regalias, e gerou um grito ensurdecedor e capaz de apiedar até mesmo seus maiores inimigos políticos.

"POR FAVOOOR, AAAAAAAAAAAAAARGHHH, QUEM....QUEM É VOCÊ? AHHHHHHHH NÃO, O QUE VOCÊ É???"
"Eu sou a própria vingança do Diabo encarnada. Se você representa o bem, se um lixo como você é o bem, eu sou pior que o mal, eu sou pior que os seus pesadelos, eu vou DESTRUIR você e todo mundo que te segue e te ajuda, um por um. A partir de agora você vai conhecer o VERDADEIRO INFERNO."
"ME MATA...POR FAVOR ME MATA..."
"HAHAHA, MATAR? - Tudo isso rola com o demônio ainda segurando o braço do deputado, ou o que sobrou dele - MATAR VOCÊ É MUITO FÁCIL. E MUITA PIEDADE. Piedade é para os bons, como você. Eu não tenho piedade. Eu vou me divertir um pouquinho. Quem sabe você não tenha algo a me oferecer?"
"TUDO, TUDO QUE VOCÊ QUISER! DINHEIRO, MULHERES, CARGOS, PROTEÇÃO, O QUE VOCÊ QUISER! ME SOLTAAA!"
"Quero nomes, meu caro pastor. Nomes, endereços, emails, quero saber quem colabora com você. Todos os seus crimes. Todos os seus pecados."
"EU FALO, EU FALO TUDO O QUE EU SEI, EU JURO QUE NÃO É MUITO!"
"AHAHAHA MAS AINDA É HUMILDE! - e soca o Pastor, com tanta força quanto calor no golpe, deixando algumas costelas quebradas e uma marca de punho na barriga do deputado - AINDA É HUMILDE! Você tem meia hora, meu caro. E vai fazê-lo aqui mesmo, perto da escuta."

Ferrugem, imóvel na cama, assiste a tudo. Depois de chorar até secar as lágrimas de tanto medo, e até se borrar, já estava quase desmaiando. O homem na labareda olhou para o enfermo, com ar de sarcástico:

"Hoje não rapaz, hoje você tá limpo.."

No mesmo instante, o homem segue na direção do Cabo Souza, o ajuda a levantar, e o coloca de frente para o deputado. Souza está paralisado de medo, e quase vomita ao perceber o braço completamente desfigurado e torto do deputado. O demônio fala:

"Eu pego só quem tem que ser pego. Seus parceiros estão bem, vivos. Os traidores estão vivos, mas devem estar irreconhecíveis, não deu pra controlar muito na hora: ou eu agia ou morriam mais pessoas."
"Quem é você?"
"Não interessa. Interessa que você tem boa cabeça. E uma escuta e um gravador. Ele - aponta para Tristanildo - é todo seu."

Meia hora depois, Cabo Souza guarda seus equipamentos e ruma pra casa. O homem que incendiou todo um corredor e fez as chamas desaparecerem junto com ele sumiu no exato instante que a entrevista acabara. Tristanildo apagara no corredor, sem conseguir reunir coragem para sair do lugar. Ele sabia que não faria mais diferença voltar pra casa: entregara o primeiro nome proibido da lista,  o de seu parceiro mais forte na Câmara; Mangalido.

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 Capítulo 7: O Coronel e o novo Soldado

Uma semana depois dos acontecimentos da madrugada no Miguel Couto, a imprensa foi à loucura. Os estouros da gravação do Cabo Souza levaram à cassação de Tristanildo, emperraram em definitivo o avanço da tentativa de mudar a Lei de Porte de Armas, e ainda colocaram pela primeira vez no alvo das críticas e com provas concretas, Mangalido. 

O Ex-coronel do exército, Neto Mangalido, era famoso por suas opiniões ainda mais conservadoras do que em comparação com Tristanildo. Fora um dos formuladores da proposta de mudança na Lei de Porte de Armas, entre outras coisas. A quantidade absurda de processos em suas costas remetia à diversos casos de apologia ao estupro, racismo, classismo, xenofobia, machismo, misoginia, enfim: uma lista mais do que suficiente para permitir julgar qualquer seguidor ou defensor do sujeito como um total mentecapto ou um fascista sem caráter. Apesar de tudo isso, nunca fora ameaçado de perda de mandato ou mesmo condenado à cadeia por incitar o crime de ódio e mesmo a anti-democracia, justamente por nunca terem havido provas de sua conduta irregular (que com certeza já era sabida). Mas agora, haviam provas.

Diferente de Tristanildo, Mangalido tinha muito mais confiança pois ele não precisava pagar para ser protegido ou ovacionado. Como coronel, tratou de garantir que os processos de formação militar gerassem uma boa quantidade de seguidores naturais de suas ideias. Ele gerou toda uma legião de fascistas que militassem por ele. Portanto, em termos de influência política - e logo, intangibilidade - Mangalido era mais forte e assumia assim uma posição de liderança no partido e nas iniciativas políticas que decidia se envolver. Era a primeira vez, de fato, que lidaria com acusações concretas, mas ainda assim mantinha a tranquilidade. Ao menos, a priori.
Esperou que a poeira baixasse naquela semana, e marcou encontro com Tristanildo em sua casa:

"Você abriu o bico."
"Manga, eu posso explicar."
"Você abriu o bico por quê? Posso saber? De verdade?"
"Não tá vendo aqui, o que fizeram?"
"Você e eu já fizemos pior em inimigo. Você saberia aguentar. Treinamos isso."
"Não Manga, não cara. Não aquilo."
"Aquilo o quê? Me justifica cara. Me dá uma justificativa. Você já aguentou pior."
"Manga, era um demônio..."
"DEMÔNIO É O CARALHO, EU SOU O DEMÔNIO AQUI E AGORA, VOCÊ VAI ME CONTAR QUEM FOI QUE VOCÊ CHUPOU PRA CHEGAR NO PARTIDO POR ACASO?'
"Me desculpa, Manga - e Tristanildo chora - é sério...eu.."
"O QUÊ? VOCÊ O QUÊ?"
"Eu ia morrer, cara. Ele era o demo...eu juro, eu vi, se você perguntar pros rapazes que estavam lá na hora.."
"Sabe o pior? ELES DISSERAM A MESMA COISA! Ao menos, os que tinham boca sarada pra falar.."

Levantou-se, cerveja na mão, franzindo a testa e procurando opções. Retornou para Tristanildo:

"Aquele projeto que ia rolar...da mãozinha lá?"
"Ah o projeto do Rafael? Eu não sei bem, desde aquele tiroteio no Alemão foi uma confusão..perdi o contato."
"Ainda tem o telefone?"
"Acho que sim."
"Me passa aqui. Eu vou atrás desse fedelho."
"Pra quê? Ele só estava na Ordem pelo projeto, a essa altura não quer nada com a gente."
"Quer, quer sim. Comigo ele quer, porque eu posso dar o que ele quer. Você é um cuzão enrolado, não resolveu pra ele. E ainda fudeu TODO MUNDO! Devia ter morrido logo."
"Então por quê não me mata?"
"E deixar mais claro que você é delator? Usa a cabeça. Viado imbecil."
"Ah...ok. Mas o que você pode dar pra ele?"
"Material. Lugar pra trabalhar."
"Pra quê esse interesse? Não vai rolar mais. Não vamos mais conseguir aprovar a mudança. Não vai dar pra Ordem sair armada por aí fazendo a limpa necessária."
"Não é a limpa que tá me preocupando. É quem te pegou. Quem pegou o Ferrugem. Já tem mais relatos desse tal demo aí, em alguns jornais. Poucas fotos sem definição. Todos os testemunhos de gente nossa falam que o cara existe. E claro, SÓ OS NOSSOS tem sido pegos. Esse cara tá cavucando a gente, ele quer fuder a gente. Especificamente. E eu vou fuder ele."
"Eu não acho que aquele projetinho possa.."
"Você CALA A BOCA. E se não funcionar, eu mesmo meto bala nesse merda."

Naquela mesma tarde, Rafael Oliveira tinha acabado de ser despejado por não pagar o aluguel. Estava bêbado, como nas últimas semanas, quando aconteceu. 

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quinta-feira, 14 de julho de 2016

4 spirits tale: Capítulos 4 e 5

Capítulo 4: Providências 

Os jornais matinais pipocavam sobre as declarações do deputado Norberto sem parar. O clima na Câmara chegou ao ápice de deputados da base aliada do governo (centro esquerda em teoria, liberal na prática, que havia feito coligações com partidos conservadores como o do deputado Tristanildo) chegarem às vias de fato apo´s a equivocada declaração do deputado Everaldo. Enquanto a oposição mais liberal se calava, a oposição mais à esquerda ganhou volume em sua voz nos debates do dia, forçando o então presidente da Câmara, Gustavo Poti (favorável ao porte de armas) à adiar a conclusão da sessão, na tentativa de ganhar tempo para arrumar a casa.

Mas a verdade é que não dependia tanto de Poti para que a base voltasse a se entender. Dependia, essencialmente, de Tristanildo. Ou melhor, do dinheiro que Tristanildo esperava receber pela manhã daquele dia. Mas não tivera notícias do Ferrugem até o momento. Eis que, no intervalo, o celular toca e o deputado atende afoito, já aos berros:
"PORRA FERRUGEM, TÁ DE SACANAGEM?"
"Não é o Ferrugem, senhor pastor"
Tristanildo se recompõe, muda o tom de voz:
"Ah, perdão. Ele tinha um compromisso muito importante comigo e.."
"Senhor pastor, desculpe interromper, mas tenho notícias dele para o senhor."
"Ah sim, prossiga."
"O Ferrugem tá em estado grave aqui no Miguel Couto."
"Como assim???"
"Confronto, seu pastor. Os traficantes chegaram atirando, parece que houve explosões.."
"COMO ASSIM, CONFRONTO? ISSO NÃO FAZ SENTIDO!"
"Ué, mas ele rodava na favela! Como não?"
"Quero dizer, me desculpe, quis dizer que não esperava que isso acontecesse."
"Ninguém espera."
"Quem está falando?"
"Aqui é o Cabo Souza, seu pastor."
"Cabo Souza, muito obrigado por me ligar. O Ferrugem é um amigo importante para mim. O senhor sabe me informar mais detalhes?"
"Por nada seu pastor, posso dizer sim. Foi ele que pediu pra eu ligar pro senhor, inclusive. Ele tá consciente."
"Poxa, que maravilha! - e só os presentes poderiam entender a ironia de Tristanildo nessa frase - Ele disse algo mais?"
"Disse nada não, pediu pra eu ligar pro senhor e pro senhor vir falar com ele assim que possível."
"Ah Cabo Souza, mas eu farei isso ainda hoje! Cuide-se! Glória de Deus!"
"Ôh glória, seu pastor!"

Souza tinha 27 anos. Negro oriundo do Lins, batalhou muito com a família e se tornou policial pelo desejo de proteger a família, inclusive da própria polícia. O treinamento lhe deu um corpo forte e resistente, e destacou-se tanto no uso de armas quanto na elaboração de táticas, tanto que costumava traçar os planos utilizados pelos seus capitães em serviço (quando estes não resolviam fazer alterações em função de razões ilícitas). De bobo não tinha nada, como confirmam as palavras que disse ao se dirigir ao Ferrugem, imobilizado no quarto:

"Mordeu. Se ele for esperto vem sozinho."
"C.cc .. cuidado. El..ele  - Ferrugem ainda tem dificuldade de falar.
"Quer matar você, e vai matar quem ficar no caminho."
"Eee see.. elee mmaannd.."
"Como eu disse, se ele for inteligente vai mandar ninguém, vai vir ele próprio. Há outros PMs vigiando o hospital, boa parte de minha confiança: qualquer idiota barulhento desses da Ordem da Família vai ser notado e pode entregá-lo."

Verdade seja dita: Cabo Souza era um puta policial. Pena a dele ser o Rio de Janeiro.

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Capítulo 5: Arthur e Renata

Eram 13 horas quando finalmente os dois acordaram. O sexo sempre fora bom, mas por algum motivo desconhecido daquela vez os dois gastaram tanta energia que é possível que tenham emagrecido 1 ou 2 quilos apenas de suor. 
Renata ainda se perguntava porque ele havia demorado tanto pra chegar na própria casa na noite passada. Eram quase 11 horas da noite. Geralmente, à essa hora, já estavam na terceira e pausando pra descansar. Ela nunca foi do tipo ciumenta, mas realmente se pegou curiosa:

"Amor, ontem cê demorou né.."
"É, foi um dia bem longo."
"Pegou trânsito? Cheguei aqui tão rápido..."
"Não po, eu realmente não consegui acelerar as coisas lá no estágio. Tive que ficar mais tempo pra finalizar, eu não queria ter trabalho pro fim de semana."
"Entendi.."
"Que foi?"
"Nada ué."
"Renata, não acredito, você está com ciúme."
"AHHH NÃAAO NEM VEM!"
"CLARO que está, sahsahusau tenho que rir. Quem diria."
"Não estou com ciúme."
"Eu devia ter completado que a ideia era ter o fim de semana todo pra você.."
"Conveniente né? Acobertando a sirigaita"

Os dois rolaram de rir e acabaram se engalfinhando em amassos novamente. Tinham uma espécie de vício corpóreo um no outro de difícil comparação com o resto dos casais de sua idade. 
Ligaram a TV, enquanto Arthur arrumava as camas e Renata se adiantava em preparar um café rápido. Era viciada em café, uma de suas poucas falhas não totalmente saudáveis em meio a todos os hábitos que mantinham seu corpo um exemplo natural do que todas as academias sonham vender para seus clientes. Arthur também tomava o café, não com tanta frequência, mas além disso não era de se estabelecer restrições. Aproveitava como bem entendia.
O noticiário bombava:
"FOI UMA PÉSSIMA DECLARAÇÃO"
"DEPUTADOS BRIGAM NA CÂMARA"
"POTI MANOBRA E VOTAÇÃO DO PORTE É ADIADA"
"TRISTANILDO CITA PM BALEADO E CHORA PARA IMPRENSA"

"Verme."
"Arthur, pára de se preocupar com política a essa hora!"
"Tá bom, deixa eu só ouvir isso aqui um instante e já desligo.."
"Arthur...."
A TV segue no depoimento de Tristanildo:

"É uma lástima, é terrível que as pessoas acreditem que a polícia dá conta. Ela não dá conta, nós deixamos o crime corromper esta nossa sociedade! A família deve ter o direito de se proteger! Orai, irmãos, pelo nosso soldado Ferrugem, baleado pela fome de matar dessas pessoas que não temem a Deus, que se encontra em estado grave no Miguel Couto! Estarei indo hoje à noite para lá. Glória de Deus!"


"Baleado é? Sei."
"Como assim até isso você acha que eles tão mentindo?"

Arthur nota que falou demais, mas não demora a responder:

"Manchete de jornal e alguns sites mais confiáveis citam queimaduras, ossos quebrados. Nada de bala. Dizer que foi baleado implica em dizer que o tráfico é mais armado que a PM, portanto a PM não dá conta e seria justo as pessoas saírem armadas por aí pra se defender."
"Eu te amo, cara. Vai ser gênio assim na minha cama."

Naquela noite, Renata sentiu um pouco de frio. Estranhou não sentir a presença do namorado. Foi quando acordou e se viu sozinha na cama, em plena madrugada.
Sem saber o que pensar, correu para a sala em busca do celular. Desnorteada, não sabia o que deveria fazer. Retornou ao quarto: Arthur estava na cama, deitado.

Renata arregalou os olhos. Eram 3 da manhã. 
Deitou-se novamente sobre o colo do amado. Sussurrou:

"Amor, cê levantou?"
"huh....não amor."
"Nossa, eu acho que devo ter caído da cama. Ou sonhado."
"Por quê?"
"Pensei que você não estivesse aqui."
"Vem cá e me aperta forte. Vê se eu não estou."
"Bobo. Mas vou apertar assim mesmo."
"Sei disso. Dorme bem meu anjo."
"Você também. Nossa, que cheiro estranho de fumaça..."

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terça-feira, 21 de junho de 2016

4 spirits tale: Capítulos 2 e 3

Aviso: Utilizando sistema de cores para facilitar identificação das personagens.


Capítulo 2: Os 3 mosqueteiros

São 9 da manhã do dia seguinte. Encontro de amigos. Renata é a primeira a chegar. 
O que em si é um fato raro, considerando seu histórico de pequenos atrasos de leve desleixo. É a mais nova do grupo de amigos, tem 21 anos. É relativamente alta para a média feminina, e o corpo esbelto reforça as tendências de modelo, sendo finalizadas por um rosto fino e um sorriso largo. O cabelo é castanho, os olhos são negros. 
A pontualidade rara acabou sendo de utilidade. Renata pôde se espreguiçar no banco e descansar as pernas apoiando-as em outro. De modo geral sempre foi uma pessoa disposta, mas o cansaço das últimas semanas tem apertado.
Especialmente porque Renata é Iara.
A heroína que não muito tempo atrás estava acenando para o povo no palanque com o prefeito. Bastante à contragosto, mas ela não podia fazer muito e nem recusar a honraria da cerimônia. Podia?
Como o nome sugere, Renata ganhou poderes sobre a água em todos os seus estados. Quase nunca precisou entrar de maneira veemente em combate, dado que a maioria dos bandidos que cruzaram seu caminho tinham as armas congeladas antes de pensarem em se mexer. Mas para o caso de acontecer, como Iara ela carregava um tridente longo adornado de pérolas e ametistas. Também quase nunca precisou usar de fato, a extensão real de seus poderes, salvo uma enchente que ela teve que forçar de volta ao mar fazia um mês. Talvez não conhecesse a extensão. Em ação, vestia azul em roupas leves (mas resistentes) e floridas, com uma máscara de algas. 
Enquanto espera a chegada do resto do grupo, diverte crianças que correm ao bebedouro ver a "água mágica que está se movendo sozinha". Claro, se diverte à distância. 
Mas logo é repreendida por Felipe:
"Por quê você é retardada?"
"Grosso."
"Tá bom, deixa te pegarem."
"Ok ok, parei."

As crianças se decepcionam com o fim do truque no bebedouro e seguem com outras brincadeiras. Felipe se senta e logo Sarah se junta aos 2:
"Tá estressadinho de ontem ainda né?"
"O que vocês duas queriam?"
"Sei lá, que você deixasse pra lá?" 
"Não sei como me convenceram."
"Alto lá, quem arrastou foi a Sarah."
"Claro! Vocês já viram os jornais hoje?"
E arremessa um exemplar na mesa. 
"Heróis recebem medalha, cidade agradece" - lê Felipe.
"Primeira capa positiva sobre a gente em meses. E vocês aí, sem querer ir."
"Mas é tão importante assim que gostem da gente?" 
"Se não gostarem da gente, como fazemos?"

É claro que a essa altura você já sabe que Felipe é Gaia e Sarah é a Cupido. Afinal, não faria sentido o diálogo se não fosse assim a realidade.
Felipe tem 25 anos, cabelo curto e castanho claro, olhos negros, é atlético. Sarah tem 24, o cabelo não é muito longo e é castanho escuro, olhos castanhos claros. De forma similar à Renata, também ganharam poderes não faz muito tempo. Felipe consegue controlar a terra e os minerais, Sarah consegue controlar o ar de modo geral. O rapaz tem uma postura um pouco mais agressiva no combate ao crime, mas nunca agrediu nenhum adversário seriamente: até porque o estrago que sua maça provocaria seria, no mínimo, polêmico. Vestia verde, com rochas servindo de armadura. Já Sarah ganhava um par de asas, que combinavam com seu arco branco e lhe davam a aparência angelical que justifica o nome. A roupa era de um rosa leve, pacífico. 

Retornando, a pergunta pairou no ar. Sarah repetiu:
"Gente, foco aqui. Se não gostarem de nós, como continuamos sendo o que somos?"
"Tomando vergonha na cara pra parar de agradar todo mundo." - disse Arthur, o último a chegar. Todos se viram pra sua chegada, nas costas do grupo. Os 3 conseguem agir como se não estivessem falando sobre algo que o amigo não podia saber em hipótese alguma.
 Os 4 sorriem. Renata toma a dianteira e se atira nos braços do namorado.
"Parece que eu que vou te sacanear hoje!"
"Ué, por quê?"
"Porque EU cheguei antes de VOCÊ. Perdeu a hora foi?"
"Pior que sim. Dormi meio mal essa noite."
Renata trata o namorado a pão de ló enquanto Sarah e Felipe se entreolham pensando o quanto a fofura dos 2 podia ser levemente irritante. 
"Mas gente, tá calor aqui hein!"
O casal ri pra Sarah. Felipe concorda:
"Cara, mas está mesmo."

Arthur esboça um sorriso sem graça e puxa assunto:
"Vocês 3 andam saindo muito sem mim, viu?"
"Você tá sempre enrolado, cara!"
"Ah mas mesmo assim. Até tu, Renata, vivia lá em casa agora só quando eu arrasto!"
"Ah amor, também ando enrolada."
"Enrolada com esses 2 sementinhas do mal, isso sim! Já to até prevendo o mal caminho" - diz rindo.
"Epa, aqui com a gente é só firmeza. Tem essa não."
"Mas sério gente, vocês 3 tão fazendo algum cursinho juntos, alguma aula? É alguma surpresa?"
"Nada disso brother. Nem temos saído tanto assim. Impressão sua."
"É po, tá viajando."
"Relaxa amor."
"Tá bom. Mas vocês andam bem 3 mosqueteiros mesmo."
"Então da próxima não atrasa, D'Artagnan."

Todos riem. A conversa prossegue. Há um policial falando no rádio próximo dali, mas nada que impeça a diversão dos amigos.
É só um grupo de amigos comum. 
Com super poderes. 
Mas comum. 

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Capítulo 3: Os planos dos homens de Deus na Terra dos demônios

Não muito distante dali, pouco mais de um bairro ou outro, um menor rouba a bolsa de uma menina desatenta. Na fuga, ele não percebe que é seguido por um rapaz um pouco mais velho. É quando ele se dá conta de que está cercado: não por um, mas 5. Todos uniformizados, com cruzes nas camisas. 
"Coé, namoral aí, que isso.."
"Que isso o caralho, seu merda."
"Fecha a boca e passa a bolsa seu moleque." 
"Que isso, que isso, olha lá que eu chamo os parça."
"Ninguém aqui tem medo de você."
E mal isso é dito, o menor sente a bolsa escapulir por seus braços mesmo tendo feito muita força para segurá-la. Mas nenhum dos sujeitos havia lhe avançado pra tomar: a bolsa foi atraída para a mão de um sexto sujeito, que usava alguma espécie de luva.
"QUE BRUXARIA É ESSA CARAIO"
"Podem dar cabo." - diz o sujeito com a bolsa em mãos.
"NÃO, NÃO, POR FAVOR AE! POR FA - e o menor não consegue mais dizer nada, sendo golpeado violentamente na cabeça por trás, e na sequência sendo socado na barriga incessantemente. Dos 5 sujeitos que o cercaram, 4 somem com o menor. Resta apenas um, que interpela ao líder que ainda tem a bolsa em mãos:
"Funcionou direitinho?"
"Ainda faltam algumas calibrações, mas tá 99%."
"Perfeito, relatarei ao pastor."
"Não, eu mesmo faço isso. Devolva a bolsa à menina."
"Certo. Glória de Deus!"
"Glória. Dispensado."

Sozinho, guarda a luva e acende um cigarro. Pega seu celular e espera impaciente para ser atendido:

"Alô? Pastor Tristanildo?"
"Não fale meu nome em público."
"O senhor me perdoe, não estou acostumado a esses esquemas."
"Nem use essa palavra."
"Olha, antes que o senhor tenha mais alguma represália, podemos ir direto ao assunto?"
"Pois bem."
"Tá pronta."
"A arma?"
"Totalmente operante. A capacidade de criar campos magnéticos focalizados é perfeita. As descargas elétricas também estão ótimas, testei mais cedo em alguns neguinhos de rua."
"Você pode falar isso mais baixo aí?"
"Não se preocupe, Pastor. Estou bem isolado."
"Certo então."
"E então digo eu, Pastor. Quando vou poder fabricar?"
"Você sabe que depende da mudança na Lei do porte."
"Por que mais eu teria ligado?"
"Isso está em curso."
"Com que velocidade?"
"A possível, senhor Oliveira."
"Aguardo retorno urgente."
"Esta noite ainda sem falta."

Rafael Oliveira voltou pra casa. Sentou pacientemente em frente à TV, vendo um jogo do seu time. Ainda teria muito o que fazer, mas julgava merecer um descanso. Afinal, quantas pessoas projetam uma luva eletro-magnética funcional a ponto de matar? Aturar os fanáticos religiosos era difícil, mas sem o teatro de formalidades jamais teria apoio para conseguir alvos teste, e muito menos o dinheiro para financiar o protótipo. Igrejas, no Brasil, são mais ricas que muitos fazendeiros. Valia à pena se fingir outro carola. 

Do seu lado, em seu escritório, o Pastor Tristanildo é quem resolve fazer uma ligação:

"Alô?"
"Pastor?"
"Porra Ferrugem, tudo bem?"
"Tudo mermão. E aí?"
"Sim, sim. Porra, se liga."
"Diz aí."
"Tá na moral o esquema?"
"Tudo preparado pra sair ainda hoje."
"Repassa o plano."
"Não tem erro, Pastor. Os alemão vem aqui hoje comprar as armas. Vão trazer maleta, no olho vivo mesmo, e deve rolar uns pó, essas tranqueiras que os grão-fino teus colega se amarra."
 "Quanto ce tá prevendo?"
"Porra, papo de 200 mil só hoje. Aí fica cinquentinha aqui pra dar a moral, pá, e nóis passa o resto aí pra tu."
"Porra, bom! Bom. Fecha isso aí e me dá o retorno."
"É nóis cara, tá safo."
"Da próxima segura um pouco essa fome aí pô. Esse mês aí vai fechar 1 milhão cara."
"Eu sei, mas é causa boa cara. Os caras fecham com a gente e aí facilita pra vocês depois no controle aí."
"Isso aí porra."

O Pastor desliga. É ele quem deve esperar a ligação, agora. 
Horas mais tarde, Ferrugem recebe os traficantes do Alemão em um galpão abandonado. Há outros PMs com ele no térreo, e diversos de guarda no andar de cima, focando a visão no centro do térreo. 
Armamento pesado sobre a mesa. Os traficantes trouxeram dezenas de malas de dinheiro, centenas de quilos de cocaína e poucos quilos de maconha. 
"Tá faltando orégano nessa porra não?"
"Porra vei, neguinho agora tá plantando..."
"É foda mesmo. Mas tá de boa, leva tudo na moral aí."

Escutam-se disparos do lado de fora. 
Os traficantes apontam as armas pra Ferrugem, e os PMs de volta para os traficantes.

"ARMOU A FODA PRA GENTE FOI SEU MERDA?"
"AQUI Ô VIADO, QUE FODA QUE EU ARMEI?"
"ESSES TIRO AÍ SEU PUTO, É BOPE?"
"BOPE O CARALHO, PORRA. SÓ SOBROU VOCÊS PRA VENDER EU VOU FICAR DE JOGUINHO POR QUÊ?"

Um dos PMs atende o rádio. Há gritos do outro lado da linha. Ele aumenta o volume para todos os presentes.

"Caralho, que porra é essa então?"
"Exército não é, iam avisar."
"Caralho mané....tá um calor do inferno de repente.."


O Pastor não recebe a ligação que esperava. E portanto, o jovem senhor Rafael Oliveira também não recebeu sua devida ligação do Pastor. Já é manhã do dia seguinte, e um tal deputado Norberto resolveu denunciar, em rede nacional, o oferecimento de propina a 200 deputados da Câmara para garantir a aprovação de mudanças na Lei do Porte de Armas, acusando o Pastor de ser o responsável pelo esquema. O deputado foi rebatido em rede nacional por um companheiro de partido do Pastor, o deputado Everaldo, que indagou:

"Vossa Excelência tá é com inveja que não levou o teu né safado?"

O Pastor leva as mãos ao rosto, desesperado. 
Já é o 5º copo de whisky de Rafael, às 10 da manhã.

"Porra de povo de igreja."

Os jornais se fizeram na notícia. Alguns poucos noticiaram, em alguma pequena tira ou coluna lateral, um confronto entre policiais e traficantes nos entornos do Alemão. Os policiais teriam usado granadas em algum ponto, o que causou um incêndio. Não havia mortos, mas muitos feridos em diferentes níveis. O mais grave era o Sargento João Lopes, conhecido como Ferrugem, com diversos ossos quebrados e queimaduras de 2º e 3º grau em boa parte do corpo.
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segunda-feira, 20 de junho de 2016

4 spirits tale

Essa história é algo que venho bolando desde, sei lá, meus 15 anos.
Era algo que eu pretendia colocar em quadrinhos. Ou mangá. Mas o nível de habilidades ilustrativas requerido para o que desejo está bem além das minhas capacidades com o lápis. Por incentivo externo, acabei por me deixar escrever o roteiro, na esperança de que um ilustrador venha a meu encontro.

O que vem a seguir, e nos próximos posts que vierem com o título, é a história, contada da maneira que imaginei há tantos anos, e na qual mergulho frequentemente durante meus devaneios da madrugada e das horas vaguíssimas. 


4 spirits tale:

Capítulo 1: O que é um herói?

2 colegas conversando, num bar. Talvez seja interessante mencionar, a título de compreensão de todos, que o mundo em que se vive está no abalo recente do surgimento de 3 heróis no Brasil. Os 3 tem feito boas ações tanto no país quanto ao redor do mundo, mas há muito debate sobre suas intenções e a legalidade dos seus atos. E é justamente sobre os tais heróis que está rodando a conversa dos nossos 2 sujeitos, aqui mencionados. Enfim, prestemos atenção:
"Ok, deixa eu começar de novo pra ver se você entende a lógica" - diz o primeiro, visivelmente estressado.
"Prossiga" - o segundo é mais tranquilo, porém sério e fala em tom cético. 
"Os caras tão ajudando, porra. A Cupido, a Iara e o Gaia."
"Sei."
"Porra, ce quer provas? A Cupido dissipou um furacão na Malásia! A Iara abasteceu todo o Sertão e ainda foi fazer o mesmo no Saara! O Gaia reflorestou diversas áreas do país!"
"E..?"
"E o quê caralho? Quer mais o quê?"
"Já parou pra pensar que eles só agem na consequência?"
"Quê?"
"Vamos lá, minha vez de mostrar a lógica. Sabe as emissões que promovem o aquecimento global? A falta de distribuição de renda e de obras não marketeiras em infra estrutura? A vista grossa com o agronegócio e a predação das subsistências?"
"Sim.."
"As respectivas causas das consequências que eles resolvem."
"E..?"
"E aí que eles não resolvem o problema em definitivo. Só vão lá aparar as pontas."
"Mas isso já ajuda as pessoas!"
"É, mas não resolve."
"Tá. Mas o que você quer que eles façam?"
"PORRA, ELES CONTROLAM ELEMENTOS NATURAIS."

Todos no bar se viram pra mesa.
"Me desculpa, perdi a linha. Mas porra, não dá. Os caras tem poder pra mudar o mundo de verdade. E eles ficam aí aparando ponta. Olha lá - a TV do bar mostra os 3 heróis posando lado a lado com o prefeito da cidade, que resolveu condecorá-los por mais uma boa ação - de braço dado com esse mercenário do Carlos Guerra! Esse desgraçado é responsável direto e indireto por centenas de mortes, diversos esquemas de corrupção e o empobrecimento geral do povo por aqui. E eles tão lá, do lado do cara, impassíveis. Faça-me o favor."
"Arthur, você tem razão de criticar, mas assim, o que eles podem fazer? Matar o cara?"
"Olha bem que não era má ideia."
Os dois riem. Arthur retoma:
"Mas falando sério, às vezes eu só queria ver esses crápulas pegando fogo. Como é que dizem os coxinhas mesmo? "Bandido bom é bandido morto". Aposto que se isso valesse não ia ter 10% dos ricos desses país. Aí chegam esses heróis aí, podendo botar ordem na casa e dar um motivo pros desgraçados se entregarem e andarem na linha, mas nããão, tem que ficar dentro da casinha. Tem que ser o exemplo."
"Mas tem que ser o exemplo, cara."
"Tem 200 milhões de exemplos nesse país. Todos acreditando nesse caminho bonito e justo que é a democracia. Uns 50 milhões aí passando fome, algo assim. E menos de 50 mil rindo disso tudo. Se banhando nesse sangue."
".."
"Mas deixa, um dia eles pegam fogo. Tudo pega fogo. E eu vou ficar rindo tomando uma cerva em casa."
"Quer saber? Fechou então. Openhouse do fim do mundo?"
"Com certeza. Breno, tô puxando o carro. Amanhã é batente."
"Vai na paz, incendiário."

Arthur sai do bar e segue pra casa. É próxima do bar, pode fazer o caminho a pé. Ele tem um perfil até comum de físico: peso próximo do normal, cabelo castanho escuro, barba que agrada à moda (apesar dele não ser do tipo que se preocupa com isso). Talvez o único destaque fora da média sejam seus olhos verdes, mas de resto é um sujeito na média. 
Segue o rapaz, no alto dos seus 25 anos, pensando no mundo e no que dissera. Até que esbarra uma pedra vermelha fosforescente no caminho.
Há um brilho forte e uma explosão. 
Mas a cidade é muito barulhenta às 10 da noite, especialmente próximo das baladas e bares. E por alguma razão, ninguém viu a explosão. E nem o Arthur.


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